terça-feira, 18 de agosto de 2009

Suzana era de ferro, o absorvente, não!


Sabe qual é a coisa mais ridícula em uma pessoa cair no chão?
A pessoa ta ali, perfeita e harmoniosa com o seu estado natural de equilíbrio. Pés no chão, gravidade, pé firme, andando, sandália bonita, “cheia de si” e de repente, perde-se toda essa relação com o equilíbrio e tomba no chão.
-Como? Eu tava andando normal, nem tropecei, quando vi já tava no chão....

Pois é. Temos que admitir que é muito “confortável” essa nossa necessidade de equilíbrio.
(Quem não ajeita um quadro torto na parede? Todo mundo ajeita, centraliza!).

A coisa mais ridícula em uma pessoa cair no chão é o fato dela sempre acreditar que nunca vai cair no chão. E quando esta ainda se encontra estatelada demonstra que,
Ops!
cair,
é hu-mi-lhan-te.
Claro. E isso tudo porque não admitimos nem aceitamos o desconforto do desequilíbrio.
Sim, o desequilíbrio parece incomodar, cutucar, irritar. Nos tira da segurança, da ordem, do aninho confortável do equilíbrio.

(Isso tudo pra dizer que situações inesperadas podem fugir em dois segundos com todo o seu senso de ordem).

É justamente nos momentos em que você está se sentindo mais segura, onde você está se levando finalmente a sério, que a vida vai e apronta uma marmelada com a sua cara.

(...)

Eu,
a protagonista desta história,
assistia aula na universidade hoje pela manhã,
muito adulta, debatendo e polemizando,
muito bem resolvida, muito experiente,
muito moderna, muito articulada,
muito falando de livros com o professor
,
quando de repente,
estava acuada na quadra de ginástica,
com vontade de chorar,
amarela,
naquela manhã na aula de educação física
na 5ª série,
em que o fluxo da minha menstruação veio danado pra catende com vontade de chegar.
(e vazou como um rio vermelho sem margens na minha bermudinha azul).
,
Mais uma vez o desequilíbrio.
Tudo bem que na universidade já não há m ais aquele tabu.
Mas a sensação de ter uma mancha imeeeeensa e vermeeeeeelha, bem à vista, na sua calça jeans é e sempre será humilhante!
,

Eu levantei e sentei
,
11h, a cadeira suja, a calça suja e uma reunião de trabalho ao meio-dia.
,
-Alguém tem um casaco?
(precisa dizer pra quê um casaco? Ok. Ta calor...)
,
-Ei, alguém tem um casaco pra eu amarrar aqui na cintura?
(precisa dizer mais? Uma garota amarela querendo um casaco pra amarrar na cintura?)
,
-Gente, pelo amordedeus, minha menstruação vazou na calça, eu preciso ir embora alguém tem um casaco???
(-eiiiiita, tadiiiiiiiinha, olha, fulana tem um lá na frente!!!)
,
Fulana faz uma cara de poucos amigos e solta um,
-tá!

(bixo, que mulher não é solidária a outra num momento desses? Não é só emprestar o casaco. É também dizer,
- aiii, olhe, vá pra casa com ele, não se preocupe, vai dar tudo certo, ai, vai, não fica assim, acontece, ta com cólica? Quer conversar? Assino teu nome na ata?)

Não, senhores, eu não tive direito a fazer manha nem a colo solidário.
O que há com essas mulheres?

Com o casaco rosa pink (em nada combinando com a minha roupa...) amarrado na minha cintura fui ao banheiro e só não chamei o absorvente vazado de arroz doce.
Depois de rodarrrr atrás de um rolinho de papel higiênico (sim, porque papel higiênico em universidade pública e água em bebedouro são coisas raras!), Eu saí do banheiro (ou seria fraudário?) devidamente “trocada” e 10% mais segura.

No ônibus, ainda fazendo cara de segura, me esforçando ao máximo, eis que ao tentar alcançar a carteira um absorvente suicida se joga aos pés do cobrador...
O cobrador olhou pra mim,
Eu olhei pro cobrador,
(aqueles dois segundos filhinhos da puta em que o mundo parece congelar)

O que você vai fazer se não manter a espontaneidade?
,
Risinho no canto da boca,
,
Aquele famoso:
-eita!
,
(Afinal, qual é o problema? Todos os dias eu estou com a calça manchada de sangue na bunda e absorventes suicidas saltam como pipoca na panela da minha bolsa e caem no chão em pleno CDU...).

É lógico que eu não ia deixar aquele rastro do meu desmantelo ali. Abaixei cheia de charme (ahh, o teatro...) e soquei o sacana de volta na bolsa.
Na minha cabeça,
- você é um Always muito mau, viu?! mau mau e mau!

Ao sentar,
Me deparei com outro grande dilema:
Se correr o bicho pega se ficar o bicho come (mas não foi esse), foi,
-Se a calça encostar na cadeira vai sujar tudo de sangue, se eu sentar em cima do casaco vou sujar a roupa da menina!

(God! Porque eu saí de casa hoje?)

Respirei.
Procurei uma cadeira afastada,
uma daquelas lá atrás onde você sofre todos os “catabius” que tem direito, e me sentei isolada e humilhada. Optei claro, por sujar a cadeira do ônibus da CRT.

Mas o Cão, que não é besta, atenta.
Aliás, o Cão é besta, né? É besta-fera. Então deve ser por isso que ele é mestre em atentar e fazer dos outros igualmente besta.
Mal sentei,
Avistei da catraca o homem mais bonito que eu já vi entrar no CDU!
Lembrava até aquele deputado estadual (começa com a letra R e termina com a letra O...hehe) que quando estagiei na Alepe,
ai!,
eu costumava comentar com as outras estagiárias sobre a sua beleza que estava menos no rosto e mais na postura!
(um homem com postura vale mais do que 10 simplesmente bonitões).
Lembrem-se,
Quasímodo era feio porque era corcunda!
Pois bem,
Em vão foi o esforço do meu pensamento para que ele sentasse bem distante de mim.
(pelo menos naquela manhã),
Mas como tudo estava mesmo obedecendo à ordem inversa, nem me espantei quando o carinha robusto e cheio de porte sentou justamente ao meu lado!

(Como assim, Bial?, E agora, José?)

Sou boba mesmo. A idéia de que quando eu me levantasse ele iria ver a cadeira toda manchada daquele sangue vivo me deixou desesperada!
Se a mancha não estivesse vermelha, no mínimo estaria “cor de burro quando foge” e,
ele poderia supor que aquilo ao invés de sangue era merda e eu,
estava toda cagada.
-Não, não, nãooooooooooo.

Sutilmente,
Abri a pasta, trá-lá-lá, arranquei uma folha do caderno, trá-lá-lá, fui disfarçando, ajeitando a franja, e da forma mais gatuna possível, durante um catabiu bem oportuno passei a folhinha pra debaixo da bunda.
Ufa.
Fiquei com aquela cara de puta-santa misturada com gato que engoliu canário.
Pensando, sinceramente pensando,
Como somos patéticos quando nos julgamos muito sérios e muito acima do bem e do mal.
Com a cabeça voltada para todos os compromissos, sempre pensando em resolver tudo pra ontem, em organizar, em deixar tudo pronto, em sermos reconhecidos, focando nossos pensamentos para o cotidiano útil, para formas inteligentes de aproveitarmos nosso tempo, em distribuir de maneira eficiente as atividades mais híbridas que fazemos e ainda não esquecer de tomar a porra da Vitamina C depois do almoço.
De repente,
A sua cabeça está 100% voltada para aquela folhinha cachorra do seu caderno barato que está cumprindo a inesperada função de não deixar rastros do desmantelo sanguíneo que está sendo o seu fluxo menstrual, ele que resolveu não somente burlar a data certa e vir mais forte que de costume, mas arrasar com a cara do absorvente e fazer de você a pateta do dia!
Que feliz, né?!
...
Com a cara mais pra fora da janela do que deveria, tentando sentir um ventinho na cara de ogra Fiona que eu deveria estar, me lembrei de uma amiga queridíssima que até aos 15 anos não podia usar absorvente.

Ela usava paninho.

Imagina a criatura ir ao colégio com um pano (sem direito a abas) preso à calcinha?
Aquele mondrongo na frente do short sinalizando tudo e mais um pouco.
E o estado de insegurança?
Sim, porque se vazasse ela não poderia simplesmente descartar o pano (uma vez que todos os panos eram devidamente lavados e re-utilizados por ela!)
Claro que tinha dedo de mãe nessa história, né?
Acontece que a mãe dessa menina não a deixava usar o absorvente porque não queria que a filha fosse até o mercadinho comprar o produto. Afinal, a vizinhança toda ia descobrir que a menina já era “moçinha”. E assim, os gaviões do pedaço já iam ficar de olho nela.
Nesse momento eu até ri, pensando, que logo essa era a melhor parte em se tornar “mocinha”.

Um pouco antes da minha parada, o bonitão robusto, com os cabelos molhados e barba recém feitíssima desceu. Foi bom. Até porque eu já estava zonza com o cheiro do perfume dele. Irritante de forte. E eu estava sensível. Argh.

Quando cheguei em casa, muito aliviada (porém, atrasada) cumpri toda a sessão higiene e saí correndo nova, limpa e cheirosa pra tal reunião ao 12h:00 (e que na verdade eu cheguei de 12h:40, mas com a justificativa acatada por todos, obrigada!).

Fim da reunião. Fim das obrigações diurnas. Um sol lindo, uma tarde linda no Bairro do Recife Antigo e a inesperada notícia de que o escritor pernambucano Raimundo Carrero estaria ministrando uma de suas oficinas sobre a construção da narrativa, gratuitamente, no auditório da Livraria Cultura, no mesmo bairro.
Claro, eu e mais 4 amigos fomos assistir esta aula.

Raimundo Carrero nos falava sobre algumas técnicas na construção da ficção e,
entre elas,
a presença do chamado “Eu - alter ego” . Segundo Carrero, o alter ego é uma forma do autor contar/revelar as verdades dele, mas usando um nome diferente para o personagem.
Quando o autor revela a sua história, seus segredos, assinando com seu próprio nome ele está usando o chamado Eu - confessional, mas,
Se usar um outro nome qualquer que não o seu,
Se trata do Eu-alter ego.
Pois bem.
Em seguida, Carrero nos pediu para, em cinco minutos, escrever em cinco linhas uma história usando o Eu - alter ego.
(reiterando: aconteceu com o autor, mas ele dá outro nome ao personagem)

Num dia como esse eu tinha material de sobra, né?
Fim dos cinco minutos e surgem às cinco horas de penúria vividas por Suzana, em cinco linhas – lidas por mim em voz alta para aquele auditório lotado:


“Dona dos seus próprios passos, das horas, dos semáforos. Absoluta e segura com a força dos seus vinte e poucos anos, Suzana de repente, voltou a 5ª série. Recuada na universidade como um bichinho sem graça, escondendo a mancha vermelha que ousou atravessar a calça jeans. Suzana era de ferro. O absorvente, não.”

Foi aprovado.
E eu fiquei muito contente, mas,
Achando uma coisa, no mínimo, estranha:

Eu corri pra esconder isso durante toda a manhã e além de revelar (através do alter ego) para aquela platéia de escritores, estou levantando bandeira aqui no blog também.

Estou muito confortável aqui na minha cadeira relatando tudo sem vergonha nenhuma.

Arrá!,
Meu equilíbrio foi devolvido!
Por isso, eu estou muito confortável. Saí do caos e voltei à sensação de ordem.
Nós e a nossa eterna relação com o equilíbrio...
Não tem ninguém olhando pra minha calça, eu não estou preocupada com folhinhas cachorras na cadeira, com o casaco rosa pink, com absorventes suicidas ou a cara do cobrador...

No meio da tarde, falando sobre Suzana,
(construindo Suzana pra falar de mim),
O equilíbrio voltou macio e percebi o quanto é bom não ser de ferro.
Ou não se preocupar tanto em ser de ferro. Porque quando você perde o seu chão duro e seguro e vai com a cara no chão,
fica mais fácil pra se perdoar!

-Suzana,
Não queira ser de ferro,
Deixe isso para as coisas insolúveis, chatas, industriais, artificiais (e ainda assim fuleiras),
como os absorventes femininos.


Renata Santana

10 comentários:

  1. Adorei !
    jah add aos favoritos..
    abção !!!

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  2. Suzana nunca foi um alter ego tão sortudo!

    Moral da história: Se sua menstruação lhe colocar numa roubada... Sente, escreva e depois dê uma boa risada.

    =D

    Jhonatan Sodré

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  3. Adooooooorei Renata! Sou sua fã :D, Deixa? *-*
    Beijos.

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  4. não acredito que aquele dia foi tão ruim, vc estava passando a imagem de tão...."vai passar"
    bjus!! amei!!!

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  5. Muito bom... A construção narrativa é bastante interessante, além de bem estruturada... A escrita da fala coloquial dá um charme especial ao texto... SUCESSO!

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  6. Rê, isso sim é que é equilibrio, falar de algo tão intimo com uma linguagem tão rebuscada e ao mesmo tempo cõmica, mérito pra vc, parabéns!!!

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  7. Muito bom, mostrei para as minhas amigas e elas adoraram. Felizmente eu nunca passei por constrangimentos com minha menstruação

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  8. Muito bom, mostrei para as minhas amigas e elas adoraram. Felizmente eu nunca passei por constrangimentos com minha menstruação

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