terça-feira, 6 de abril de 2010

Era uma segunda-feira.

Uma segunda-feira particular em um mês qualquer do ano de 1999.

Havia chovido durante todo o fim de semana. Chovido tanto. Chovido muito. Chuva sem trégua. Chuva para uma cidade despreparada e para pessoas sem guarda-chuva. Tempestade em algo como o outono ou o verão. Não importa. Estava fazendo sol, mas de repente chovia sob flores e frutas maduras. Mas nada realmente passou a importar, e todos começaram a voltar mais cedo pra casa. Ou nem chegar a sair.

Muita chuva.

Muita chuva, minha mãe. Volte a dormir, minha filha...
Não, eu não fui à escola. Abracei o frio e os desenhos animados na TV. Minha mãe também não foi trabalhar e assistiu toda programação da manhã na minha cama. Aquela segunda não corria, somente deslizava oscilante pelo vidro da janela do quarto.
Ora fúria, ora resignação. A TV vacilava, chiava, mas nada importava naquela segunda-feira de leite com Nescau no copo colorido. Nada.

Devagar, toda família foi retornando mais cedo pra casa.

Ao meio-dia no meio do dia da chuva do desmantelo da barra da calça molhada do expediente não cumprido, a minha irmã voltou pra casa. Voltou com um jornal nas mãos e replicando alto e chocada o que a manchete dizia: Prefeito declara estado de calamidade pública!

E repetiu:
Minha gente, o prefeito declarou estado de calamidade pública, ninguém deve sair de casa hoje!!

...

Ca-la-mi-da-de pública.

A palavra caiu como uma luva em minhas mãos frias. Aqueceu todos os dedos vãos.

Calamidade pública. Aquilo me deu um conforrrrrto. Um alívio. Uma vitória.

Era o dia em que numa segunda-feira comum, todos estariam em casa, surrealmente almoçando juntos, sem nada pra fazer. Se fosse num sábado de sol, não estaríamos todos la na sala, assistindo filme catálogo em plena hora do almoço.
Mas era uma segunda.
Era uma segunda-feira e a cerâmica estava fria, todos estavam calmos com roupas de casa num estado profundo de Calamidade.
Estado de Calamidade, ela disse. Nada me deu tanto conforto. O dia seguiu.

É.
Vieram outras segundas e outras e outras. Também vieram muitas chuvas e hoje à noite, tantos anos, eu me lembrei daquele dia em 1999 e agradeci.


Agradeci porque precisei acordar cedo para ir estudar. Agradeci por que precisei trabalhar logo em seguida e trabalhei muito o dia inteiro e fez tanto calor, mamãe, tudo bem? Ta podendo falar agora? A senhora está bem? Oh! Que calor fez hoje, né?! Ah mami, saudades, te ligo depois...
e trabalhei e voltei pra casa à noite super cansada e não tive tempo pras coisas que eu gosto.

Agradeci muito por isso.

Eu agradeci quando vi o Rio hoje pela televisão.



(Renata Santana)





Calamidade pública: Chuva desabriga cariocas. Imagem: Último Segundo.

4 comentários:

  1. Essa Gata é Meu Orgulho *-* Continue dando esses textos de presente aos nossos olhos.
    É talento pra dar e vender,
    Te Adoro Renatinha :D,
    Saudade de te ver pelo CAC, beijocas ;*

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  2. todos
    num
    estado
    profundo de calamidade.

    sim. e que texto amiga.
    lembrei dos dias de chuva de antigamente e os de agora e me senti como a sua personagem, ou talvez ela tenha se sentido como eu e como muitas outras pessoas.

    beijoemtu

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